Reinava fim de tarde, quase noitinha quando veio esse querer, mas o relógio não marcava hora exata. Poderia ser alta noite, madrugada friorenta, amanhecer esplendoroso, início de tarde de sol causticante. À ela parecia simplesmente um entardecer, seu momento preferido.
Foi dessa forma que formulou nela esse claro desejo, ser mãe.
Aconteceu assim de súbito. Primeiro aconteceu uma comichão tornando-a inquieta. Sentiu fome, sede e nada a saciou.
Depois veio a solidão, um sofrer silencioso, a falta de espaço. Seguindo do tempo parado, o deitar sem dormir.
Durante dias o sofrer prosseguiu.
Num repente o cenário se estampou, eram fraldas, chupetas, rostinhos rosados, dobrinhas salientes, tudo diminutivo num comercial de televisão.
A cidade saltitou de bebês, morenos, mulatos, loiros e mestiços. O ar se impregnou de cheiros de talcos, xixis e babas.
Ela procurou espaços na casa. Do lado da cama ficaria o berço com rendas e laços, no armário os pacotes de mingau, na geladeira a mamadeira.
A ideia floresceu dia após dia, que se transforaram em muito tempo, semanas e até meses talvez.
E chegou da mesma forma inesperada o desespero, era um espaço reservado ao lado em todos os lugares, era o sonho diurno e noturno.
Alucinação, não de maneira sombria mas adocicada foi o que ocorreu quase no último processo, via rostos a olhando através das vidraças, e esses rostinhos tornaram-se parte de sua realidade, pois pegava-se falando com eles:
— Saía da chuva, você vai ficar resfriado.
— Coma tudo pra você crescer forte e bonito.
— Olha o aviãozinho.
— Você quer passear?
— Dorme com Deus meu filhinho.
E o filhinho agora já tinha personalidade definida, já se escondia atrás da porta quando estava triste, já mostrava a língua quando estava com raiva, a beijava e a abraçava sem qualquer motivo simplesmente para dizer que a amava.
Então, a mulher passou a cantar para ela mesma para ninar o filho que morava dentro do seu ser. E ao invés de dormir, o filho que formulava acordou cada vez mais.
Era um querer sem explicação.
O último estágio desse querer foram as lágrimas. Chorou, jogou fora os anticoncepcionais, somou as contas, subtraiu o salário, fez cálculos que valeriam para os próximos vinte e um anos, escolheu mentalmente o progenitor.
E no final de tudo a realidade bateu com os dedinhos em suas costas e disse enfaticamente: Acorda!
Engavetou o querer.
— Quem sabe daqui há alguns anos —murmurou solitária.
Foi buscar no latão de lixo os anticoncepcionais.
“Nossos filhos estão propensos a serem simplesmente miragem, e talvez nunca se tornarão personagens num quadro perfeito e envelhecido de família” — pensou a mulher antes de adormecer embalada pelo silêncio de sua vida.
* Um dos primeiros contos escritos (em torno de três décadas).
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