Lembro-me dessa textura roçando minhas mãos débeis e enrugadas, fios revoltos que escorregam entre meus dedos rechonchudos.
Lembro-me do peso dessa cabeça silenciosa aconchegada em meu colo, que não chega a incomodar, amassando meu vestido florido.
Lembro-me desse arfar sincronizado, tranquilo e semiadormecido, talvez sonhando com carneirinhos ou com as histórias que não me lembro para contar-lhe novamente.
Lembro-me desse olhar, agora adormecido, que sempre inquieto e turbulento encontra em minha mente esquecida um eco profundo e indefinível. Talvez o tenha visto nas noites assustadoras de sua infância quando provavelmente tenha lhe oferecido colo; flagrado entremeio às portas batidas na inconstância da adolescência; tentando se esconder quando naufragava em lágrimas nas provas difíceis da vida; outras vezes exibindo-se risonho e festivo após árduas conquistas.
Lembro-me de sua voz. Esse som que ordena possivelmente já foi som de gargalhadas, soluços ou apelos a meu colo materno.
Como pode ter se transformado em ditador o garotinho que necessitava do embalo para dormir? Agora me embala com determinações ásperas sob o lema de proteção filial.
— Tome seu remédio.
— Coma o alimento.
— Tome banho.
— Vá dormir.
Ah! Que saudade de quando eu te embalava com voz suave, ou repreendia-te com palavras adoçadas com acalentos.
Lembro-me de suas mãos. Quando pequenas se encaixavam às minhas para atravessar ruas, agora, crescidas e insensíveis me arrastam impacientemente a médicos e afazeres.
Lembro-me desse cheiro de cansaço adulto, que me alegrava denunciando a tua aproximação tão aguardada e tão limitada.
Não me lembro do seu nome, provavelmente escolhido entre tantos e com décadas de antecedência ao seu nascer.
Mas sei que é um filho que descansa no colo envelhecido de uma mãe.
E aproveitando esse silêncio pacífico, eu viajo pela casa.
A cozinha me convida com aroma de acolhimento. Local onde tantas vezes esqueci a panela ao fogo e adicionei temperos em demasia. Mas, onde cozinhava cantarolando, remexendo com a colher de pau a polenta e o frango, que me rendiam elogios gulosos.
Passei pela área de serviço, recordando que esqueci diversas vezes a torneira ligada inundando a casa inteira:
— Que tsunami é esse, mãe?!? — reclamava o moço aos berros.
Dirigi-me ao jardim, meu local favorito, percebi que minhas margaridas estavam tristonhas, sentei-me junto a elas para conversarmos, dizem que as plantas necessitam de atenção.
Provavelmente demorei-me mais do que imaginava nessa tarefa. Quando desviei o olhar que observava as lagartas insolentes que escalavam os antúrios, o sol já estava se pondo atrás do muro.
Percebi que era tarde.
Diante de tantos esquecimentos esqueci-me de retornar a tempo ao sofá roto da sala fria.
Espero que o moço de rosto endurecido, que descansa naquele colo inerte, me compreenda.
Sou muito desatenta e ando muito esquecida ultimamente.
*Conto selecionado e publicado no livro: XII CLIPP - Concurso Literário de Presidente Prudente - Ruth Campos 2018.
Retrata a doença de alzheimer sob a ótica de uma senhora no momento de sua travessia.
A poesia: Não te assombre (livro A menina que morava em mim) aborda o mesmo tema.
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